sexta-feira, 4 de março de 2016

O mundo está tentando esquecer o século 20?

Guerra em Londres

 O historiador Tony Judt, morto em 2010, foi um dos pensadores mais brilhantes de sua geração. O livro "Quando os Fatos Mudam" traz seus melhores ensaios. 

Mal deixamos o sé­cu­lo 20 para trás, suas controvérsias e suas rea­lizações, seus ideais e seus medos já começam a deslizar para a área cinzenta marcada pelas distorções da memória. No Ocidente, apressamo-nos a nos livrar, sempre que possível, da bagagem econômica, intelectual e institucional do século 20.

No rastro dos acontecimentos após a queda do Muro de Berlim, em 1989, tomados por uma confiança ilimitada e por não muita reflexão, largamos o século 20 para trás e subimos ousadamente a bordo de seu sucessor, animados por meias verdades convenientes: o triunfo do Ocidente, o fim da história, o momento unipolar americano, a marcha inexorável rumo à globalização e ao livre mercado.

Na sequência do 11 de setembro de 2001, mais de uma vez me chamou a atenção uma perversa insistência em não compreender o contexto de nossos atuais dilemas; em não ouvir com atenção algumas das cabeças mais ponderadas das décadas anteriores; em se esforçar ativamente para esquecer e não para lembrar; em negar a continuidade e proclamar o novo em todas as oportunidades possíveis. 

Talvez isso tudo não seja assim tão surpreendente. O passado recente é o mais difícil de conhecer e compreender. Além disso, o mundo realmente passou por uma notável transformação desde 1989, e transformações como essas são sempre perturbadoras para os que se lembram de como as coisas eram.

As memórias da Europa pré-Primeira Guerra Mundial costumavam descrever (e ainda descrevem) uma civilização perdida, um mundo cujas ilusões tinham sido literalmente explodidas. Ainda que o mundo tenha mesmo mudado após 1918, o pós-guerra foi influenciado pela experiência e pelo pensamento do século 19.

A economia neoclássica, o liberalismo, o marxismo (e sua cria, o comunismo), ‘a revolução’, a burguesia e o proletariado, o imperialismo e o ‘industrialismo’ — as pedras fundamentais do mundo político no século 20 — foram todos produtos do século 19. Hoje, ao contrário, a presença do século passado se faz sentir de forma bem mais leve.

O século 20 que optamos por comemorar parece curiosamente fora de foco. A impressão é que tudo foi deixado para trás, que agora podemos avançar — sem o estorvo representado pelos erros do passado — rumo a uma era diferente e melhor. Essa celebração, contudo, não aprofunda nossa avaliação e nossa consciência em relação ao passado.

Em vez de ensinarmos história, levamos as crianças para visitar museus e monumentos. Pior ­ainda: nós as encorajamos a ver o passado — e suas lições — tendo como base o sofrimento de seus antepassados.

Atual­mente, a interpretação do passado recente é composta de fragmentos variados de passados separados, cada um deles (judeu, polonês, sérvio, armênio, alemão, americano-asiático, palestino, irlandês, homossexual…) marcado por sua própria condição de vítima, de modo a enfatizar sua singularidade. O mosaico resultante não nos vincula a um passado comum, mas, ao contrário, nos separa dele.

Esse caráter estrangeiro do passado em parte se deve à pura velocidade com que aconteceram as mudanças. A ‘globalização’ realmente representou um aumento da quantidade, em detrimento da qualidade, na vida das pessoas num grau que seria inimaginável para nossos avós. A expansão das comunicações oferece um exemplo disso.

Hoje, a maioria das pessoas fora da África subsaariana tem acesso a uma infini­dade de dados. As ideias e as informações, porém, são fragmentadas. O resultado é que temos cada vez menos em comum com as outras pessoas. Mas o que há de equivocado na pressa com que deixamos o século 20 para trás? Pelo menos nos Estados Unidos, esquecemos o significado da guerra.

Existe um motivo para isso. Em grande parte da Europa, da Ásia e da África, o século 20 foi vivido como um ciclo de guerras. Mesmo aqueles países que emergiram formalmente vitoriosos de alguns conflitos se lembravam da experiência de uma forma muito semelhante à dos perdedores.

A Itália depois da Primeira Guerra, a China após a Segunda Guerra e a França depois das duas guerras poderiam servir de exemplo. E há ainda aqueles países que ganharam uma guerra, mas ‘perderam a paz’, desperdiçando as oportunidades que lhes foram concedidas pela vitória. Os aliados ocidentais em Versalhes e Israel, nas décadas que se seguiram a 1967, continuam a ser os exemplos mais reveladores.

A ameaça à civilização

A guerra não é apenas uma catástrofe por si mesma. Traz outros horrores no rastro. Os Estados e as sociedades tomados durante e após a Segunda Guerra por Hitler ou Stálin (ou por ambos, um depois do outro) vivenciaram não apenas a ocupação e a exploração mas também a degradação e a corrosão das leis e das normas da sociedade.

As próprias estruturas da vida civilizada — regulamentos, leis, professores, policiais, juí­zes — desapareceram ou assumiram um novo e sinistro significado. A guerra levava a comportamentos que julgaríamos impensáveis e dis­funcionais em tempos de paz. É a guerra, não o racismo, ou o antagonismo étnico, ou o fervor religioso, que leva a atrocidades.

A guerra — a guerra total — foi a condição crucial para a criminalidade em massa da era moderna, dos campos de concentração aos vários casos de genocídio. Os americanos, talvez numa situação única no mundo, vivenciaram o século 20 sob uma ótica bem mais positiva. Não foram invadidos e, comparados a outros grandes países que combateram no século 20, perderam relativamente poucos soldados em batalha.

Na Primeira Guerra Mundial, os Estados Unidos sofreram pouco menos de 120.000 mortes em com­bate. Para o Reino Unido, a França e a Alemanha, os números são, res­pectivamente, 885.000, 1,4 milhão e cerca de 2 milhões.

Na Segunda Guerra Mundial, os Estados Unidos perderam 420.000 homens em combate; o Japão perdeu 2,1 milhões; a China, 3,8 milhões; a Alemanha, 5,5 milhões; e a União ­Soviética perdeu um número estimado em 10,7 milhões. Nas baixas civis, as que deixam a marca mais indelével na memória nacional, o contraste é gritante.

Só na Segunda Guerra os britânicos sofreram 67.000 mortes; a França, 270.000; a Alemanha, 1,8 milhão; a Polônia, 5,5 milhões; e a União Soviética, um número estimado em 11,4 milhões. Na China, o número excedeu 16 milhões. As perdas americanas (excluída a Marinha Mercante) nas duas guerras foram de menos de 2.000 mortos.

Por isso, os Estados Unidos são hoje a única democracia avançada na qual figuras públicas glorificam e exaltam os militares, um sentimento familiar à Europa de antes de 1945. Tendo a história do século 20 como parâmetro, parece totalmente errada a ideia de que são os americanos que entendem de guerra, enquanto os europeus não passariam de ingênuos, com suas fantasias pacifistas.

Muito pelo contrário. São os europeus (juntamente com os asiáticos e os africanos) que com­preen­dem muito bem o significado de um conflito armado. Para Washington, a guerra é a primeira opção. Para o resto do mundo desenvolvido, ela se tornou o último recurso. A ignorância a respeito do século 20 também leva a erros na identificação do inimigo. Temos bons motivos para nos ocuparmos agora com o terrorismo.

Porém, antes de nos lançarmos numa guerra de 100 anos para erradicar o terrorismo da face da Terra, consideremos o seguinte. Terroristas não constituem um fenômeno novo.

Houve terroristas sionistas explodindo mercados árabes na Palestina antes de 1948; terroristas irlandeses financiados por americanos na Londres de Margaret Thatcher; terroristas mujahidins armados pelos Estados Unidos nos anos 80 no Afeganistão e muitos outros ao longo da história.

Dizer que o terrorismo hoje é diferente por expressar um ‘choque de culturas’, imbuído de uma combinação tóxica de religião com política autoritária, baseia-se numa leitura equivocada do século 20.

Também é um insulto à inteligência comparar um punhado de assassinos, desligados de qualquer Estado e movidos pela religiosidade, com a ameaça representada no século 20 pelos ricos e modernos Estados dominados por partidos totalitários comprometidos com a agressão a outros países e com o extermínio.

Se Osama bin Laden fosse verdadeiramente comparável a Hitler ou a Stálin, teríamos realmente reagido ao 11 de Setembro inva­dindo… Bagdá? Mas o mais sério erro consiste em confundir a forma com o conteúdo. Ou seja, definir todos os vários terroristas e terrorismos de nosso tempo, com seus objetivos contrastantes e às vezes conflitantes, tomando como critério apenas suas ações.

A leviandade com que nos convencemos de que estamos em guerra com ‘extre­mistas’ que habitam um distante ‘Islamistão’, que nos odeiam pelo que somos e que procuram destruir ‘nosso modo de vida’ é um indício de que esquecemos a lição do século 20: a leviandade com que o medo e o dogma podem nos levar a demonizar outros, a negar a eles o sentido comum de humanidade ou a proteção de nossas leis, e a fazer com eles coisas inomináveis.

De que outro modo podemos explicar nossa atual indulgência em relação à prática da tortura? Pois indulgentes certamente somos. Até bem recentemente era a prática da tortura que distinguia as democracias das ditaduras. Nós nos vangloriamos de ter derrotado o ‘império do mal’ dos soviéticos.

Mas talvez devêssemos ler as memórias dos que sofreram nas mãos daquele império e, depois, comparar com os abusos degradantes que suspeitos de terrorismo têm sofrido no Ocidente. Será que eles são tão diferentes assim? Longe de fugirmos do século 20, precisamos, acredito, olhar para trás e examiná-lo novamente com um pouco mais de atenção.

Precisamos aprender de novo — ou quem sabe pela primeira vez — como a guerra embrutece e degrada tanto os vencedores quanto os perdedores, e o que acontece conosco quando, depois de termos travado impensadamente uma guerra sem dispor de um bom motivo, somos encorajados a exagerar e demonizar nossos inimigos para justificar a continuação da guerra por tempo indefinido.”

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