sábado, 13 de fevereiro de 2016


Reconstruções da aparência de dois indivíduos neandertais do Museu Neandertal de Mettmann, na Alemanha: miscigenação com humanos modernos deixou marcas em nosso genoma que influenciam funcionamento do sistema imune
Foto: EFE/Scheidemann/Carstensen

 O sistema imunológico dos humanos modernos (Homo sapiens) deve muito de sua eficiência atual aos neandertais e denisovans, espécies humanas arcaicas com quem dividimos o planeta durante dezenas de milhares de anos. Dois estudos independentes publicados esta semana no periódico científico “American Journal of Human Genetics” tomaram caminhos diferentes para chegar à mesma conclusão: variações genéticas herdadas das duas espécies aumentaram a capacidade, entre as pessoas que as carregam hoje, de lutar contra infecções. Esta “herança bendita”, porém, também tem um custo, já que esses mesmos genes podem ter deixado o organismo mais propenso a alergias, caracterizadas por uma reação exagerada do sistema imunológico.

Segundo os pesquisadores, o cruzamento entre os humanos modernos e os neandertais e denisovans teve forte influência, na diversidade do genoma das populações atuais, em três genes responsáveis pela codificação de proteínas fundamentais para o funcionamento do chamado sistema imunológico inato. Nossa primeira linha de defesa, este sistema tem atuação mais rápida, embora inespecífica. Isto é, atua contra qualquer tipo de micro-organismo ou substância invasora.

REFORÇO EM TRÊS GENES

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Os três genes que ganharam reforço dos humanos arcaicos, batizados TLR1, TLR6 e TLR10, regulam a produção de proteínas que atuam na superfície das células, onde detectam componentes de bactérias, fungos e parasitas. Com isso, eles estimulam respostas inflamatórias e antimicrobianas e ativam nosso sistema imunológico adaptativo, o que “aprende” a lutar contra micro-organismos específicos e “lembra” dos invasores com os quais já tivemos contato. Justamente por isso, o sistema adaptativo é a base da eficácia de estratégias de defesa como as vacinas.

— Estes e outros genes da imunidade inata apresentam níveis mais altos de ancestralidade neandertal do que o resto do genoma codificante (a parte de nosso DNA que governa a produção de proteínas e outros compostos essenciais à vida) — explica Lluis Quintana-Murci, pesquisador do Instituto Pasteur em Paris, do Centro Nacional de Pesquisas Científicas (CNRS) da França e principal autor de um dos estudos. — Isso destaca o quão importantes os eventos de introgressão (trocas de genes entre espécies) podem ter sido para a evolução do sistema imunológico inato dos humanos modernos.

Vários estudos anteriores publicados nos últimos anos já mostraram que entre 1% e 6% do genoma de populações humanas modernas fora da África Subsaariana vieram de espécies arcaicas como os neandertais e os denisovans. Diante disso, Quintana-Murci e seus colegas decidiram investigar como isso poderia ter influenciado a evolução do nosso sistema imunológico inato. A partir da grande quantidade de dados disponíveis sobre pessoas atuais compilada pelo Projeto 1.000 Genomas e do sequenciamento genético de humanos arcaicos, eles se focaram em 1,5 mil genes que se sabe estarem envolvidos com essa estrutura de defesa.

Numa análise detalhada e sem precedentes dos padrões de variação genética desses genes e das mudanças evolutivas nas regiões onde eles estão, os pesquisadores, comparando esses dados com o resto do genoma humano, estimaram quando estas alterações ocorreram. Da mesma forma, os cientistas identificaram o quanto desta variação é devida aos genes herdados dos neandertais.

A pesquisa também mostrou que muitos desses genes pouco mudaram durante longos períodos de tempo, num sinal de que sua funcionalidade foi mantida. Já outros genes ligados ao sistema inato sofreram alterações seletivas rápidas, em que uma nova variante surgia e logo ganhava predominância, possivelmente devido a mudanças no ambiente ou como resultado de uma epidemia. Desta forma, muitas das adaptações nesses outros genes ocorreram nos últimos 13 mil a 6 mil anos, à medida que as populações humanas deixaram de ser caçadoras-coletoras e se organizaram em grupos para se dedicar à agricultura.

— Mas nossa maior surpresa foi ver que o agrupamento dos TLR 1, 6 e 10 está entre os genes com maior ancestralidade neandertal tanto entre os europeus quanto entre os asiáticos — destaca Quintana-Murci.


OUTRO ESTUDO REFORÇA CONCLUSÃO

Já o grupo de cientistas liderado por Janet Kelso, do Instituto Max Planck para Antropologia Evolucionária em Leipzig, na Alemanha, queria saber qual a importância funcional dos genes arcaicos nos humanos atuais de uma forma mais ampla. Eles analisaram o genoma de pessoas de hoje em busca de regiões que tivessem alta similaridade com o genoma dos neandertais e denisovans, além de sua prevalência em populações modernas espalhadas pelo planeta. A investigação os levou justamente aos mesmos três genes TLR.

Segundo a pesquisa de Janet e equipe, duas das variantes nesses genes são mais similares ao genoma dos neandertais, enquanto a terceira apresenta semelhança com o dos denisovans. O estudo indica que estas variantes ofereciam uma vantagem seletiva por estarem associadas a mais atividade do sistema imune inato, com uma reação maior a patógenos (agentes causadores de doenças). Assim, embora esta maior sensibilidade possa aumentar a proteção contra infecções, também pode elevar a vulnerabilidade a alergias.

— O que emergiu de nosso estudo, assim como do outro trabalho, é que a miscigenação com humanos arcaicos teve implicações funcionais no homem moderno. Sua consequência mais óbvia foi moldar nossa adaptação ao ambiente pela melhoria de resistência a patógenos e da metabolização de novos alimentos — esclarece Janet, para quem a ideia faz muito sentido. — Os neandertais viviam na Europa e no Oeste da Ásia cerca de 200 mil anos antes da chegada dos humanos modernos. Provavelmente já estavam adaptados ao clima, alimentos e patógenos locais. Ao nos misturarmos com eles, ganhamos adaptações vantajosas.

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