Líderes católico romano e ortodoxo russo exigem fim da perseguição a cristãos
HAVANA - Fazia quase mil anos que as igrejas Católica e Ortodoxa Russa
estavam separadas. Mas, de forma bastante afetuosa, os líderes das duas
vertentes do cristianismo, o Papa Francisco e o patriarca Kirill,
respectivamente, trocaram históricos abraços e beijos no aeroporto de
Havana, logo após o desembarque do Sumo Pontífice.
No encontro de ontem,
os dois dirigentes emitiram uma declaração conjunta pedindo o
restabelecimento da unidade no cristianismo e uma ação imediata da
comunidade internacional para proteger cristãos da brutal perseguição,
inclusive genocídios, que sofrem no Oriente Médio e no Norte da África.
Eles condenaram a violência que tem custado milhares de vidas no Iraque e
na Síria, deixando sem lar e meios de vida milhões de pessoas. Com
cerca de 1,1 bilhão de católicos romanos e 150 milhões de ortodoxos
russos — de um total de 300 milhões de ortodoxos — ambos os líderes
tentam usar da grande influência política que detêm para conseguir a
estabilidade nestas regiões.
Finalmente! Somos irmãos’
Finalmente! — exclamou Francisco em direção a Kirill no momento em
que ambos adentravam um salão no Aeroporto de Havana, cada um vindo de
uma porta em lados opostos. — Nós somos irmãos.
O Papa, vestindo traje e solidéu brancos, entrelaçou os braços com
Kirill, que usava um chapéu branco, alto, abobadado, com uma cruz
ortodoxa dourada no topo e do qual pendiam estolas sobre as vestes
negras — em seguida, beijaram-se nas duas bochechas.
Está muito claro que esta é a vontade de Deus — ressaltou Francisco.
Prontamente, o patriarca ortodoxo respondeu ao Pontífice, ambos auxiliados pelos intérpretes:
Sim, as coisas estão muito mais fáceis agora.
As duas vertentes religiosas estavam separadas desde 1054, quando o
Grande Cisma dividiu os ramos ocidental e oriental do cristianismo.
Enfim reunidos, o Papa e o patriarca discutiram, por cerca de duas
horas, outros problemas comuns, como o racha e as disputas territoriais
entre as duas igrejas após a queda da União Soviética. Acusada durante
décadas de proselitismo por parte dos ortodoxos russos, a Igreja
Católica tenta superar a desconfiança e evita condenar a política
intervencionista do presidente russo, Vladimir Putin, na Ucrânia, gesto
apreciado pela Igreja Ortodoxa, ainda que criticado pelos católicos
ucranianos de rito grego, que apoiam o governo de Kiev.
Lamentamos a perda da unidade. Conscientes dos muitos obstáculos a
superar, esperamos que nosso encontro contribua para a obtenção da
unidade enviada por Deus”, afirmaram Francisco e Kirill na declaração de
30 tópicos, que assinaram na presença do presidente cubano, o ateu Raúl
Castro, anfitrião e facilitador do encontro. Eles ressaltaram que
“famílias inteiras, aldeias e cidades” de maioria cristã do Oriente
Médio e Norte da África estão sendo “completamente exterminadas”.
“Erguendo nossas vozes em defesa dos cristãos perseguidos, também nos
solidarizamos com sofrimentos de seguidores de outras tradições
religiosas, que se tornaram vítimas da guerra civil, do caos e da
violência terrorista.”
A reunião dos dois clérigos, que surpreenderam ao anunciar o encontro em
cima da hora, na semana passada, foi alcançada após negociações feitas
em sigilo. E deve abrir caminho para uma visita do Papa a Moscou e do
patriarca ao Vaticano. Além disso, através do líder ortodoxo, Moscou
volta a estender sua influência no Ocidente, num momento em que a Rússia
se encontra isolada.
Há um terceiro protagonista, o presidente Putin”, escreveu, em seu blog,
o vaticanista Marco Politi, ao recordar que Francisco recebeu, no ano
passado, o líder russo por duas vezes no Vaticano. “Seria uma
ingenuidade pensar que a repentina disponibilidade do patriarca não está
relacionada com o papel da Rússia neste momento geopolítico”,
acrescentou Politi.
A escala histórica em Cuba foi apenas o começo da viagem para ambos os
religiosos. Francisco segue para o México, onde vai percorrer seis
cidades, incluindo a perigosa Ciudad Juárez, e deve discursar contra a
pobreza e a desigualdade. Também está previsto um encontro com os pais
dos 43 estudantes desaparecidos no estado de Guerrero em 2014, bem como
com o presidente Enrique Peña Nieto. O Pontífice celebrará uma missa na
fronteira com os EUA — o que motivou críticas de Donald Trump, o mais
bem colocado candidato republicano na corrida à Casa Branca, para quem
“o Papa é muito político”. Já o patriarca Kirill, vai visitar, nos
próximos 11 dias, países da região, entre eles o Brasil e o Paraguai.
Falamos claramente, sem meias palavras — disse brevemente Francisco a jornalistas, ao final da reunião.
Por
sua vez, o líder religioso russo destacou que “as duas igrejas podem
cooperar protegendo aos cristãos em todo o mundo”. Na despedida, assim
como no começo do histórico encontro, Francisco e Kirill trocaram
novamente abraços e beijos.
As diferenças conceituais
Deus e a Virgem Maria
Católicos romanos: Deus
trinitário, com o Espírito Santo procedendo do Pai e do Filho. A Virgem
Maria teria sido concebida sem pecado original e foi redentora junto a
Cristo, antes de ser elevada corporalmente ao Céu
Ortodoxos: Creem num Deus trinitário, no qual o Espírito
Santo só vem do Pai. Não acreditam em privilégios à Virgem Maria em sua
concepção, nem que ela tenha sido elevada ao Céu após sua morte
Purgatório e pecado
Católicos romanos: Creem
no Purgatório, aonde vão as almas que precisam ser purificadas. Por
causa de Adão e Eva, todos os seres humanos chegam ao mundo com o pecado
original. Celibato obrigatório para o clero
Ortodoxos: Negam a existência do Purgatório, achando
insuficientes as provas dos católicos. Não creem no pecado original,
apesar da inclinação do homem ao mal. O celibato só é obrigatório ao
alto clero
Imagens e o crucifixo
Católicos romanos: Imagens
e estátuas são permitidas nos templos católicos. Seu crucifixo tem um
eixo horizontal e um vertical, maior em função da representação de como
Jesus morreu
Ortodoxos: As imagens são permitidas nos templos, mas as
estátuas, não. Seu crucifixo tem duas travessas a mais que o católico.
Uma delas, inclinada, representa os cravos nos pés de Jesus na cruz
Hierarquia e seguidores
Católicos romanos: A
autoridade máxima é o Papa, que lidera a Igreja de Roma e é considerado
infalível nas questões doutrinárias. Tem cerca de 1,1 bilhão de
seguidores, sendo a maior seita cristã no mundo
Ortodoxos: A autoridade máxima são os patriarcas, sejam de
Rússia, Grécia ou Jerusalém. O de Constantinopla é o primeiro entre os
pares. Tem 300 milhões de seguidores. Metade é de ortodoxos russos
Templos e liturgia
Católicos romanos: As
igrejas têm bancos que permitem a visibilidade do altar de qualquer
ponto. Seus fiéis têm acesso a ele para comungar. Desde as últimas
décadas, as missas não costumam passar de uma hora
Ortodoxos: Os templos ortodoxos não costumam ter bancos. Uma
área reservada do santuário só pode ser acessada pelo sacerdote. Suas
missas são solenes e podem durar horas — até uma noite inteira.
Havana, neutra e sigilosa
Causa estranheza a escolha de Cuba como cenário para o encontro histórico entre o Papa Francisco e o patriarca Kirill, primado da Igreja Ortodoxa Russa. Mil anos tiveram que se passar do Cisma que separou católicos e ortodoxos para que os líderes de ambas igrejas aceitassem se reunir. E, obviamente, a pergunta que se faz hoje meio mundo é: por que Havana?
Dizia o Prêmio Nobel de Literatura Gabriel García Márquez que não há melhor lugar no mundo do que Cuba se alguém quer se reunir em segredo para conspirar, ou negociar discretamente o problema mais insolúvel. “Difícil vazar algo, e o que se atrever, já sabe”, brincava Gabo.
Ao proverbial controle cubano — bem resumido no dito popular de que “aqui só se sabe o que se quer que se saiba”— soma-se a condição de “território neutro” de Havana. No caso de negociações duras ou com marcadas tintas ideológicas, como entre as Farc e o governo colombiano, está clara a segurança que Cuba pode oferecer a ambas as partes.
O patriarca Kirill foi quem consagrou a Catedral Ortodoxa de Nossa Senhora de Kazan, em Havana, em 2008, quando era arcebispo de Smolensk e Kaliningrado. A primeira vez que viajou à ilha foi em 1994, quando as relações entre Fidel Castro e a Igreja Católica eram especialmente tensas. O líder cubano permitiu a visita do patriarca, cujo objetivo era revitalizar a pequena comunidade ortodoxa russa na ilha após o desaparecimento da União Soviética. Posteriormente, Castro autorizou a construção da catedral, enquanto impedia a Igreja Católica de construir novos templos.
Esta boa relação, somada à condição de Havana como aliada do governo russo, fazem da ilha um bom lugar para a celebração do encontro com o Papa, que também tem uma sintonia muito especial com Raúl Castro. Se Francisco serviu de mediador com os Estados Unidos para ajudar na normalização das relações entre Havana e Washington, agora Cuba aparece como um anfitrião confiável, discreto e seguro para dois líderes espirituais que estão simplesmente há um milênio sem se dirigir a palavra.