sábado, 13 de fevereiro de 2016

Encontro dos líderes religiosos encerrou quase milênio de Cisma Foto: Gregorio Borgia / REUTERS

Líderes católico romano e ortodoxo russo exigem fim da perseguição a cristãos

HAVANA - Fazia quase mil anos que as igrejas Católica e Ortodoxa Russa estavam separadas. Mas, de forma bastante afetuosa, os líderes das duas vertentes do cristianismo, o Papa Francisco e o patriarca Kirill, respectivamente, trocaram históricos abraços e beijos no aeroporto de Havana, logo após o desembarque do Sumo Pontífice. 

No encontro de ontem, os dois dirigentes emitiram uma declaração conjunta pedindo o restabelecimento da unidade no cristianismo e uma ação imediata da comunidade internacional para proteger cristãos da brutal perseguição, inclusive genocídios, que sofrem no Oriente Médio e no Norte da África. 

 Eles condenaram a violência que tem custado milhares de vidas no Iraque e na Síria, deixando sem lar e meios de vida milhões de pessoas. Com cerca de 1,1 bilhão de católicos romanos e 150 milhões de ortodoxos russos — de um total de 300 milhões de ortodoxos — ambos os líderes tentam usar da grande influência política que detêm para conseguir a estabilidade nestas regiões.

Finalmente! Somos irmãos’

  Finalmente! — exclamou Francisco em direção a Kirill no momento em que ambos adentravam um salão no Aeroporto de Havana, cada um vindo de uma porta em lados opostos. — Nós somos irmãos.

O Papa, vestindo traje e solidéu brancos, entrelaçou os braços com Kirill, que usava um chapéu branco, alto, abobadado, com uma cruz ortodoxa dourada no topo e do qual pendiam estolas sobre as vestes negras — em seguida, beijaram-se nas duas bochechas.

 Está muito claro que esta é a vontade de Deus — ressaltou Francisco.

Prontamente, o patriarca ortodoxo respondeu ao Pontífice, ambos auxiliados pelos intérpretes:

Sim, as coisas estão muito mais fáceis agora.


 

As duas vertentes religiosas estavam separadas desde 1054, quando o Grande Cisma dividiu os ramos ocidental e oriental do cristianismo. Enfim reunidos, o Papa e o patriarca discutiram, por cerca de duas horas, outros problemas comuns, como o racha e as disputas territoriais entre as duas igrejas após a queda da União Soviética. Acusada durante décadas de proselitismo por parte dos ortodoxos russos, a Igreja Católica tenta superar a desconfiança e evita condenar a política intervencionista do presidente russo, Vladimir Putin, na Ucrânia, gesto apreciado pela Igreja Ortodoxa, ainda que criticado pelos católicos ucranianos de rito grego, que apoiam o governo de Kiev.

Lamentamos a perda da unidade. Conscientes dos muitos obstáculos a superar, esperamos que nosso encontro contribua para a obtenção da unidade enviada por Deus”, afirmaram Francisco e Kirill na declaração de 30 tópicos, que assinaram na presença do presidente cubano, o ateu Raúl Castro, anfitrião e facilitador do encontro. Eles ressaltaram que “famílias inteiras, aldeias e cidades” de maioria cristã do Oriente Médio e Norte da África estão sendo “completamente exterminadas”. “Erguendo nossas vozes em defesa dos cristãos perseguidos, também nos solidarizamos com sofrimentos de seguidores de outras tradições religiosas, que se tornaram vítimas da guerra civil, do caos e da violência terrorista.”

A reunião dos dois clérigos, que surpreenderam ao anunciar o encontro em cima da hora, na semana passada, foi alcançada após negociações feitas em sigilo. E deve abrir caminho para uma visita do Papa a Moscou e do patriarca ao Vaticano. Além disso, através do líder ortodoxo, Moscou volta a estender sua influência no Ocidente, num momento em que a Rússia se encontra isolada.

 Há um terceiro protagonista, o presidente Putin”, escreveu, em seu blog, o vaticanista Marco Politi, ao recordar que Francisco recebeu, no ano passado, o líder russo por duas vezes no Vaticano. “Seria uma ingenuidade pensar que a repentina disponibilidade do patriarca não está relacionada com o papel da Rússia neste momento geopolítico”, acrescentou Politi.

A escala histórica em Cuba foi apenas o começo da viagem para ambos os religiosos. Francisco segue para o México, onde vai percorrer seis cidades, incluindo a perigosa Ciudad Juárez, e deve discursar contra a pobreza e a desigualdade. Também está previsto um encontro com os pais dos 43 estudantes desaparecidos no estado de Guerrero em 2014, bem como com o presidente Enrique Peña Nieto. O Pontífice celebrará uma missa na fronteira com os EUA — o que motivou críticas de Donald Trump, o mais bem colocado candidato republicano na corrida à Casa Branca, para quem “o Papa é muito político”. Já o patriarca Kirill, vai visitar, nos próximos 11 dias, países da região, entre eles o Brasil e o Paraguai.

Falamos claramente, sem meias palavras — disse brevemente Francisco a jornalistas, ao final da reunião.

Por sua vez, o líder religioso russo destacou que “as duas igrejas podem cooperar protegendo aos cristãos em todo o mundo”. Na despedida, assim como no começo do histórico encontro, Francisco e Kirill trocaram novamente abraços e beijos.

As diferenças conceituais

 

Deus e a Virgem Maria

Católicos romanos: Deus trinitário, com o Espírito Santo procedendo do Pai e do Filho. A Virgem Maria teria sido concebida sem pecado original e foi redentora junto a Cristo, antes de ser elevada corporalmente ao Céu

Ortodoxos: Creem num Deus trinitário, no qual o Espírito Santo só vem do Pai. Não acreditam em privilégios à Virgem Maria em sua concepção, nem que ela tenha sido elevada ao Céu após sua morte

Purgatório e pecado

Católicos romanos: Creem no Purgatório, aonde vão as almas que precisam ser purificadas. Por causa de Adão e Eva, todos os seres humanos chegam ao mundo com o pecado original. Celibato obrigatório para o clero

Ortodoxos: Negam a existência do Purgatório, achando insuficientes as provas dos católicos. Não creem no pecado original, apesar da inclinação do homem ao mal. O celibato só é obrigatório ao alto clero

Imagens e o crucifixo

Católicos romanos: Imagens e estátuas são permitidas nos templos católicos. Seu crucifixo tem um eixo horizontal e um vertical, maior em função da representação de como Jesus morreu

Ortodoxos: As imagens são permitidas nos templos, mas as estátuas, não. Seu crucifixo tem duas travessas a mais que o católico. Uma delas, inclinada, representa os cravos nos pés de Jesus na cruz

Hierarquia e seguidores

Católicos romanos: A autoridade máxima é o Papa, que lidera a Igreja de Roma e é considerado infalível nas questões doutrinárias. Tem cerca de 1,1 bilhão de seguidores, sendo a maior seita cristã no mundo

Ortodoxos: A autoridade máxima são os patriarcas, sejam de Rússia, Grécia ou Jerusalém. O de Constantinopla é o primeiro entre os pares. Tem 300 milhões de seguidores. Metade é de ortodoxos russos

Templos e liturgia

Católicos romanos: As igrejas têm bancos que permitem a visibilidade do altar de qualquer ponto. Seus fiéis têm acesso a ele para comungar. Desde as últimas décadas, as missas não costumam passar de uma hora

Ortodoxos: Os templos ortodoxos não costumam ter bancos. Uma área reservada do santuário só pode ser acessada pelo sacerdote. Suas missas são solenes e podem durar horas — até uma noite inteira.

Havana, neutra e sigilosa 

  

Causa estranheza a escolha de Cuba como cenário para o encontro histórico entre o Papa Francisco e o patriarca Kirill, primado da Igreja Ortodoxa Russa. Mil anos tiveram que se passar do Cisma que separou católicos e ortodoxos para que os líderes de ambas igrejas aceitassem se reunir. E, obviamente, a pergunta que se faz hoje meio mundo é: por que Havana?

Dizia o Prêmio Nobel de Literatura Gabriel García Márquez que não há melhor lugar no mundo do que Cuba se alguém quer se reunir em segredo para conspirar, ou negociar discretamente o problema mais insolúvel. “Difícil vazar algo, e o que se atrever, já sabe”, brincava Gabo.

Ao proverbial controle cubano — bem resumido no dito popular de que “aqui só se sabe o que se quer que se saiba”— soma-se a condição de “território neutro” de Havana. No caso de negociações duras ou com marcadas tintas ideológicas, como entre as Farc e o governo colombiano, está clara a segurança que Cuba pode oferecer a ambas as partes.

O patriarca Kirill foi quem consagrou a Catedral Ortodoxa de Nossa Senhora de Kazan, em Havana, em 2008, quando era arcebispo de Smolensk e Kaliningrado. A primeira vez que viajou à ilha foi em 1994, quando as relações entre Fidel Castro e a Igreja Católica eram especialmente tensas. O líder cubano permitiu a visita do patriarca, cujo objetivo era revitalizar a pequena comunidade ortodoxa russa na ilha após o desaparecimento da União Soviética. Posteriormente, Castro autorizou a construção da catedral, enquanto impedia a Igreja Católica de construir novos templos.

Esta boa relação, somada à condição de Havana como aliada do governo russo, fazem da ilha um bom lugar para a celebração do encontro com o Papa, que também tem uma sintonia muito especial com Raúl Castro. Se Francisco serviu de mediador com os Estados Unidos para ajudar na normalização das relações entre Havana e Washington, agora Cuba aparece como um anfitrião confiável, discreto e seguro para dois líderes espirituais que estão simplesmente há um milênio sem se dirigir a palavra.

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