Em terras de sanidade obrigatória e desenfreada, quem permite a loucura é
rei. E rainha. Pois imagine que, sãos e fora de manicômios, estejamos
saindo no tapa por nossas verdades. Dividindo o mundo entre o Bem e o
Mal.
Contabilizando relatos selvagens. Justificando nossa falta de utopia com
um racionalismo paralisante. Deixando de sonhar e de se arrepender.
Nem isso, nem aquilo. Nossa existência se encontra bem ali, no meio do
isso e do aquilo. No incerto e no incalculável. Entre o olhado e o
invisível.
Nise da Silveira, psiquiatra alagoana (1905-1999), enxergou a riqueza de
seres humanos que estavam “no meio do caminho”. No meio do caminho
entre o existir e a dignidade. No meio do caminho entre a loucura e a
exclusão total. Entre o aceitável e o abominável.
Essa mulher se rebelou contra a psiquiatria que aplicava violentos
choques para "ajustar" pessoas e propôs um tratamento humanizado, que
usava a arte para reabilitar os pacientes.
Esquizofrênicos marginalizados e esquecidos puderam ser autores de obras
hoje expostas no Museu de Imagens do Inconsciente, no Rio de Janeiro
(RJ). A arte marcou o renascimento daquelas pessoas para a sociedade.
Os ensinamentos de Nise nos falam de uma atualidade que se repete a cada
vez que a loucura é estigmatizada e polarizada: é ou não é louco(a).
Cobramos de nós mesmos, o tempo todo: sejamos funcionais. Como se não
pudéssemos falhar ou viver nossas escolhas fora da curva que definiram
para nós.
Nise, essa senhorinha miúda, agigantou a humanidade ao cuidar de
brasileiros rejeitados pelo sistema e isolados do convívio. A história
dela já foi tema de documentários e agora volta às telas com o filme
inédito Nise – O Coração da Loucura, que estreia nesta quinta-feira
(21).
Dirigido por Roberto Berliner e estrelado por Gloria Pires, o longa,
baseado no livro Nise - Arqueóloga dos Mares, do jornalista Bernardo
Horta, traz um recorte acessível e emocionante da atuação da psiquiatra e
sua defesa da arte como principal ferramenta de reintegração de
pacientes chamados "loucos".
Depois de assistir ao filme, fica evidente, por meio de uma ficção que
comove e mobiliza, o fato de que Nise terá sempre nosso respeito e
admiração, pois tratou a loucura com carinho e fez dela um motor de
vida.
Descobrir a história de Nise é encontrar um pouco de nós mesmos nos
momentos em que parecemos não “caber” em nossa própria existência.
Como essa mulher fez a diferença no mundo, listamos algumas razões pelas quais ela merece ser convocada à nossa memória:
Ela foi uma mulher pioneira
Em 1926, ao se formar na Faculdade de Medicina da Bahia, Nise era a
única mulher em uma turma de 157 alunos. Ainda na graduação ela
apresentou o estudo Ensaio sobre a criminalidade da mulher no Brasil.
Ela deu voz à loucura
“Na época em que ainda vivíamos os manicômios e o silenciamento da
loucura, Nise da Silveira soube transformar o Hospital Engenho de Dentro
em uma experiência de reconhecimento do engenho interior que é a
loucura”, explica à revista Cult Christian Ingo Lenz Dunker,
psicanalista e professor titular do Instituto de Psicologia da USP.
Nise era uma defensora da loucura necessária para se viver. “Não se cura
além da conta. Gente curada demais é gente chata. Todo mundo tem um
pouco de loucura. Vou lhes fazer um pedido: vivam a imaginação, pois ela
é a nossa realidade mais profunda. Felizmente, eu nunca convivi com
pessoas muito ajuizadas.”
Ela foi presa política
Nise ficou presa de 1934 a 1936, durante o Estado Novo, acusada de
envolvimento com o comunismo. Ela foi denunciada por uma colega de
trabalho, que era enfermeira. No presídio Frei Caneca, ela dividiu a
cela com Olga Benário, a militante comunista alemã que na época era
casada com Luís Carlos Prestes, lembra a revista Cult.
Ela foi citada em um livro do Graciliano Ramos
Na prisão, Nise também conheceu o escritor alagoano Graciliano Ramos, que a cita em seu livro Memórias do Cárcere:
"(...) Lamentei ver a minha conterrânea fora do mundo, longe da
profissão, do hospital, dos seus queridos loucos. Sabia-se culta e boa.
Rachel de Queiroz me afirmara a grandeza moral daquela pessoinha tímida,
sempre a esquivar-se, a reduzir-se, como a escusar-se a tomar espaço.”
Ela implementou a terapia ocupacional no manicômio
Em 1944, Nise passou a trabalhar no Hospital Pedro II, antigo Centro
Psiquiátrico Nacional, no Rio de Janeiro. Ela se recusou a seguir o
tratamento da época, que incluía choque elétrico, cardiazólico e
insulínico, camisa de força e isolamento. Ao dizer “não”, a psiquiatra
foi transferida, como “punição”, para o Setor de Terapia Ocupacional do
Pedro II. A reportagem da revista Cult lembra que esse era um espaço
desprestigiado na época.
Porém, essa transferência foi fundamental para a revolução que Nise
provocaria na psiquiatria: foi nesse setor do hospital que ela
implementou, junto com o psiquiatra Fábio Sodré, a Terapia Ocupacional
no tratamento psiquiátrico.
Ela usou a arte para tratar problemas graves de saúde mental
Nise percebeu que as artes plásticas eram o canal de comunicação com os
pacientes esquizofrênicos graves, que até então não se comunicavam
verbalmente. As obras produzidas por eles davam “voz” aos conflitos
internos que viviam.
Ela expôs as artes feitas pelos pacientes
Além do efeito terapêutico, as artes plásticas possibilitaram que os
pacientes (ou clientes, como Nise gostava de chamá-los) se tornassem
verdadeiros artistas.
A produção do ateliê do Setor de Terapia Ocupacional já tinha despertado a atenção de pesquisadores de saúde
mental e médicos, mas críticos de arte também viram naqueles trabalhos
obras artísticas dignas de exposição. Foram organizadas duas exposições
internacionais e, em 1952, foi inaugurado o Museu de Imagens do
Inconsciente, no Rio de Janeiro.
Em entrevista à revista Cult, Luiz Carlos Mello, diretor do Museu das
Imagens do Inconsciente e autor da fotobiografia Nise da Silveira –
Caminhos de uma Psiquiatra Rebelde, informa que o acervo pessoal de Nise
da Silveira é tombado como Memória do Mundo da Unesco. “Com a criação
do Museu, também como um centro de estudos e pesquisa, seu acervo
atingiu mais de 360 mil obras e se tornou a maior e a mais diferenciada
coleção desse tipo de arte no mundo. Suas principais coleções foram
tombadas pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional.”
Ela introduziu gatos e cachorros na rotina dos psicóticos
Nise encorajou os pacientes psicóticos a conviverem com gatos e
cachorros. O resultado foi uma admirável promoção de afetividade com os
bichinhos.
Ela revelou as emoções dos esquizofrênicos
Elizabeth Maria Freire de Araújo Lima, professora do Curso de Terapia
Ocupacional da USP e autora do livro Arte, Clínica e Loucura: Território
em Mutação, explica à revista Cult que Nise constatou que o mundo
interno do esquizofrênico, considerado inatingível até então, poderia
ser acessado, revelando as emoções desses pacientes por meio das artes
plásticas. “Nise afirmava que o hospital colaborava com a doença e acreditava que caberia à terapêutica ocupacional parte importante na mudança desse ambiente.”
Ela chamou a atenção de Jung
Nise era uma devoradora de livros e tinha um interesse especial pela
obra do psiquiatra suíço Carl Gustav Jung. Ela escreveu uma carta para
ele, pedindo ajuda para interpretar as mandalas que os pacientes
desenhavam. A correspondência é relatada na fotobiografia Nise da
Silveira – Caminhos de uma Psiquiatra Rebelde:
“A configuração de mandala harmoniosa, dentro de um molde rigoroso,
denotará intensa mobilização de forças auto-curativas para compensar a
desordem interna. Então pedi para que fotografassem algumas mandalas e
as enviei com uma carta para C. G. Jung, explicando o que se passava.
Foi um dos atos mais ousados da minha vida.”
Bernardo Horta, autor da biografia Nise — Arqueóloga dos Mares, diz à
Cult que Nise “constata o que Jung afirmava: se para o neurótico – o que
seria todos nós, segundo Freud – o tratamento é por meio da palavra, ou
seja, a psicanálise, para o esquizofrênico, segundo Jung, a palavra não
dá conta. Para esse paciente, o tratamento deveria ser pela imagem”.
Em 1957, Nise é convidada por Jung para passar um ano estudando com ele
no Instituto Junguiano, na Suíça, além de expor o acervo do Museu de
Imagens do Inconsciente no II Congresso Internacional de Psiquiatria. Na
volta ao Brasil, em 1958, ela criou o Grupo de Estudos C. G. Jung no
Rio de Janeiro, que coordenou até morrer, em 1999.
Ela questionou os manicômios
Para Nise, a experiência em manicômios mostrou que havia uma confusão
entre hospital psiquiátrico com cárcere, com os pacientes tratados como
presos. Avessa a essa abordagem desde o começo, e defensora de um olhar
humanista, em 1956, Nise fundou a Casa das Palmeiras, a primeira
instituição a desenvolver um projeto de desinstitucionalização dos
manicômios no Brasil.
A Casa é lugar para o convívio afetivo e estímulo à criatividade dos
psiquiátricos. A clínica funciona em regime aberto, sem fins lucrativos,
à base de doações.
Ela ajudou a escrever a história da psiquiatria
Nise apontou falhas na psiquiatria, contestou práticas e demonstrou
soluções, dando novos contornos e sentidos aos tratamentos e às relações
entre psiquiatras e pacientes. Em seus 94 anos de vida, a alagoana
publicou dez livros e escreveu uma série de artigos científicos.
Ela representa uma resistência atemporal
O psicanalista Christian Dunker, no Blog da Boitempo, reforça a atemporalidade dos feitos de Nise:
“Não me parece um acaso que, em meio ao momento de maior dissenção
social que já vivemos, desde os anos de chumbo da ditadura militar,
estejamos presenciando o maior retrocesso desde então registrado em
matéria de saúde mental. A nomeação de Valencius Wursch Duarte Filho
como secretário de saúde mental do Ministério da Saúde, em uma operação
indecente de barganha política, é o retorno de tudo o que Nise demorou
uma vida para desfazer. Passeatas, manifestações e mesmo a própria
ocupação, que persiste há mais de dois meses, de uma das salas do
Ministério, parecem não ter voz nem luz contra a volta das piores trevas
psiquiátricas.”
“Duarte Filho foi diretor técnico do hospital psiquiátrico Casa de Saúde
Dr. Eiras, fechado em 2012 depois de constatadas graves violações aos
direitos humanos pela Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos
Deputados”, escrevem os psicanalistas Antonio Lancetti e Maria Rita
Kehl, e o psicólogo Aldo Zaiden, em um artigo na Folha de S. Paulo.
Segundo a Sociedade Brasileira de Psicanálise, entre os profissionais de
saúde, a indicação de Duarte Filho para o cargo é vista como um
“retrocesso e uma ameaça real aos avanços conseguidos nos últimos anos
com a Rede Nacional de Saúde Mental, que promoveu a substituição dos
hospitais psiquiátricos pelos Centros de Atenção Psicossociais,
organizados para oferecer atendimento intensivo, articulados a
emergências psiquiátricas, residências terapêuticas e outras formas
efetivas de reabilitação, beneficiando milhares de pessoas antes
sujeitas a maus-tratos de toda ordem”.
Mais do que atual: Nise é urgente para a sociedade brasileira.
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